Yoga é uma prática que cativa pessoas há séculos e, embora muitos acreditem que suas origens remontam à Índia antiga, sua evolução ao longo do tempo é uma história de troca e invenção. Enquanto honramos as tradições do passado, também celebramos a evolução dinâmica do yoga como uma prática viva que continua a inspirar e transformar vidas.
Alguns dos desenvolvimentos do ioga ocorreram no século passado, como resultado de intercâmbios culturais contínuos, reflexos do início da globalização. Já no fim do século, acadêmicos de todos os cantos do mundo entraram na busca para descobrir as origens desse fenômeno global — seja através da linguística, história, arqueologia, antropologia, sociologia entre outras áreas do conhecimento.
O que descobriram até hoje é que, a tradição do hatha yoga inicialmente tinha apenas poses de meditação, práticas de limpeza, celibato para obter poderes sobrenaturais e posturas físicas estáticas, que eram realizadas por horas e consideradas formas de austeridade (“tapas”).
Um relato histórico da prática de “tapas” vem do lendário Alexandre o Grande (356 aC — 323 aC), que encontrou ascetas iogues em suas viagens. Alexandre e sua caravana ficaram surpresos ao ver homens imóveis sob o sol escaldante, aparentemente possuindo poderes sobre-humanos para suportar o solo quente sob seus pés descalços.
Seu encontro com os iogues foi um choque cultural, ele nunca havia testemunhado tamanha demonstração de disciplina mental e física. Aqui está um trecho de seus relatos:
“[…]Outro estava em uma perna, com um pedaço de madeira de três côvados de comprimento levantado em ambas as mãos; quando uma perna estava cansada ele mudou o suporte para a outra, e assim continuou o dia inteiro” — Roots of Yoga, Mallinson e Singleton (2017: 88)

De lá para cá, muita coisa mudou e é interessante observar que os textos de hatha yoga foram influenciados pelas práticas corporais de outros lugares. Abaixo listo alguns textos e a quantidade de posturas descritas neles:
- século 12; Dattätreyayogasästra ; 1 posturas
- séc. 13/14; Vivekamärtanda; 2 posturas
- séc. 13/14; Goraksasataka; 2 posturas
- século 15; Sivasamhità; 4 posturas
- século 15; Hathapradipikä; 15 posturas
- século 18; Hathapradipika-Siddhäntamuktävali; 96 posturas
- século 18; Gherandasamhitä; 32 posturas
- século 18; Jogapradipyaka; 84 posturas
- 1966; Yogadipika de BKS Iyengar (“Luz no Yoga”); 200 posturas
Embora os primeiros textos apresentassem poucas posturas, a essa época na Índia antiga já existiam várias sequências descritas, mas em outros contextos, como nas escrituras Jainistas, nos Upanishads, nos Épicos Mahabharata e Ramayana, nos Puranas e no Cânone Pali da tradição budista Theravada.
Elas também estão em textos tântricos, por exemplo, o Pasupatasutra prescreve a dança como parte da adoração de Pasupati, enquanto que o Nayasutra do Nisväsatattvasamhita ensina ao praticante como reproduzir as formas das letras do alfabeto com posturas corporais.
Todas essas vertentes podem ter influenciado o hatha yoga posteriormente, mas vale relembrar que a troca entre Índia e outros países sempre existiu, e podemos traçar outros paralelos também:
Note que o aumento das posturas ocorreu a partir do século 15, o que pode ter conexão com o crescente interesse na beleza masculina após a Idade Média. Nessa época, Michelangelo esculpiu a estátua de David e foram feitas muitas descobertas sobre a anatomia, a biomecânica e a cinesteologia muscular, tendências que podem ter entrado em contato com as terras indianas.
O caso da saudação ao sol — Surya Namaskar
Durante décadas, a sequência da Saudação ao Sol tem sido praticada em estúdios de ioga em todo o mundo, com muitos assumindo que seja uma série de movimentos de antigos textos de Hatha Yoga. No entanto, a verdade é que nenhum dos textos, imagens ou esculturas descobertos até hoje mencionam essa sequência.
Apesar de sua popularidade, as origens dessa prática são frequentemente negligenciadas nos treinamentos de professores de ioga. O Surya Namaskar A, B ou qualquer outra variação praticada nos estúdios de ioga foi criado há menos de 100 anos por indianos em busca de um exercício físico “completo” e foi então incorporado ao Hatha Yoga, tendo sua popularidade impulsionada tanto por gurus do ioga quanto por fisiculturistas.
Eu explico, durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, mostrar saúde e força era uma forma de demonstrar a soberania nacional. Por exemplo, os alemães usaram seus exercícios de ginástica não apenas para desenvolver corpos saudáveis, mas também para promover a moralidade e criar “novos alemães”.*
Na Europa, diversos textos sobre esportes como remo, equitação, boxe e natação, bem como manuais sobre caminhada, escalada e salto, foram publicados nessa época. Nesse contexto, surgiram revistas de saúde e fitness, como L’Athlète, que estreou em 1896, mesmo ano dos primeiros Jogos Olímpicos modernos. Em 1893, também ocorreu a primeira exposição internacional de fisiculturismo:
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Na Índia, várias ginásticas ocidentais como Ling, Sandow e YMCA tiveram um impacto significativo e foram incorporadas à cultura local de lutas. Essa influência é evidente em The Indian Encyclopedia of Bodybuilding (1950), um livro que foi traduzido para o inglês e vendido em outros países, e que incluía uma descrição do Surya Namaskar como um exercício, juntamente com uma história detalhada da tradição.
Essa história do Surya provavelmente foi inspirada no que estava escrito no Yoga-Mimansa, livro internacionalmente famoso de Kuvalayananda (1920), onde o autor narra que os jovens brâmanes do século XVIII costumavam realizar até 1.200 saudações ao sol todas as manhãs. Essa informação, porém, nunca foi encontrada em nenhum outro relato histórico ou religioso anterior. Kuvalayananda provavelmente usou essa história para promover sua técnica como mais tradicional e original do que outros manuais, uma tática de marketing comum na época.
Na realidade, o Surya Namaskar foi criado por um Rajah rico e poderoso de Aundh, uma região perto de Bombaim. Depois de experimentar outros manuais de exercícios e não alcançar os objetivos físicos que esperava (quem nunca?), criou sua própria sequência de posturas a partir de alguns movimentos que viu seu pai fazer quando jovem e, com a ajuda do guru Paramahansa Yogananda, adaptou-a como uma forma de ginástica para os público geral.
De acordo com o livro de Elliott Goldberg “The Path of Modern Yoga: The History of an Embodied Spiritual Practice”, Bhawanrao Shriniwasrao Pant Pratinidhi (1868–1951), também conhecido como Bala Sahib, foi um líder político indiano que popularizou a prática da Saudação ao Sol em início do século 20 e fundou uma escola de ioga e ginástica em Satara, na Índia, onde ensinou a Saudação ao Sol como parte do currículo.
Bhavanaro provavelmente nomeou sua sequência de Surya Namaskar devido à sua semelhança com o ritual de adoração ao sol no qual os sacerdotes brâmanes se ajoelham e se prostram — ritual inclusive que ainda pode ser visto hoje no Templo do Sol em Andhra Pradesh.
No entanto, a sequencia de Bhavanaro e Yogananda não se parece com a dos Brahmanes e nem era sua intenção manter a sequência sagrada ou secreta, mas promovê-la como uma prática revigorante para todos, universal, por isso a sistematizou como a ciência dos Namaskaras, que dizia ter benefícios como desenvolvimento muscular, cura de doenças e alívio de dores.
Havia um livreto — como os outros manuais da época — que incluía ilustrações e práticas recomendadas em ciclos, variando de 25 a 50 ciclos para crianças de oito a doze anos, 50 a 150 ciclos para meninos e meninas de doze a dezesseis anos e 300 ciclos para todos acima de dezesseis anos.
Depois de se tornar popular em algumas regiões da Índia, essa sequência foi disseminada pelo mundo, tanto no livro de fisiculturismo, quanto no livro de Kuvalayananda, citados acima, mas no geral inserida nos meios relacionados ao Yoga.
A prática navegava entre esses dois mundos provavelmente porque a propaganda nacionalista ou anti-colonialista da época sugeria que Deus desejava corpos saudáveis para a nação e enfatizava a importância de desenvolver uma juventude indiana fisicamente, bem como mental, moral e espiritualmente forte.
Assim, as práticas eram todas realizadas nos mesmos ginásios (conhecidos como akharas), onde os praticantes compartilhavam várias técnicas. Nesses locais havia fortes movimentos anti-colonialistas , o que causava um paradoxo, entre aceitar as técnicas europeias e estrangeiras no geral, mas ao mesmo tempo fortalecer o movimento nacionalista, por isso, por vezes, tudo era apropriado, adaptado e renomeado como uma prática “puramente indiana” — por vezes colocadas debaixo do guarda-chuva do yoga.
É interessante também lembrar que essa visão holística (corpo, mente, consciência e religiosidade estarem interconectados) já vem da cultura indiana e é possível encontrar nos textos de hatha yoga medievais descrições de coisas diversas chamadas de “yoga” e a reprodução desses mesmos conceitos compilados posterioremente, séculos depois, em outros textos, como yoga também.
Nos casos mais modernos, há textos relatando, por exemplo, as práticas de Iyer, um fisiculturista indiano de renome mundial, que incorporava pujas religiosos e práticas de limpeza de hatha yoga em sua rotina de treinamento no ginásio. Da mesma forma, o próprio Bhavanaro realizava Surya Namaskar diariamente entre 3 e 4 da manhã, entoando mantras védicos e bija mantras.

A fusão de ioga e fisiculturismo talvez seja melhor exemplificada pela Copa Bishnu Charan Ghosh, uma competição anual de ioga realizada em Los Angeles. O evento leva o nome de Bishnu Charan Ghosh, um famoso fisiculturista de Bengala e fundador da Faculdade de Educação Física de Calcutá (1923), agora conhecida como Ghosh’s Yoga College.
Gosh era ninguém menos do que irmão mais novo de Paramahamsa Yogananda, autor da icônica “Autobiografia de um Yogi” e co-autor da sequência Surya Namaskar com Bhavanaro, como mencionado anteriormente.
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Depois de apenas algumas décadas, a relação entre ioga e musculação parece ter sido esquecida, com muitos vídeos online retratando as duas práticas como total opostos conflitantes. No entanto, um exame mais atento da história revela que essas duas disciplinas seriam muito diferentes se nunca tivessem se cruzado.
Como vimos, a onda do fisiculturismo influenciou a criação da sequência Surya Namaskar, que posteriormente foi incorporada ao repertório do Hatha Yoga e hoje é praticada como uma meditação em sincronia com a respiração.
Outro exemplo da troca contínua entre yoga e musculação é o vácuo estomacal, uma técnica de limpeza descrita em textos medievais de ioga conhecida como “nauli”, que foi incorporada por fisiculturistas e ainda é praticada hoje.

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*Fato curioso: fascistas e nazis adoravam yoga (ou o que era disseminado como yoga)