Recentemente, a Rainha da Inglaterra faleceu e, no dia de seu falecimento, um arco-íris apareceu perto do Palácio Buckingham. Alguns acreditavam que eram boas energias para a Rainha, mas um cara twittou que era Alan Turing zoando com a morte “dessa vaca”.
Ele estava brincando com o fato de que Turing estaria comemorando a morte da rainha, porque ele foi perseguido a vida toda pela realeza, por ser homosexual.

Esse tweet me deu vontade de reviver um artigo que o Turing publicou na revista de filosofia e psicologia de Oxford, no qual ele abria o questionamento “máquinas podem pensar?”.
Turing queria fazer um experimento para responder essa pergunta, mas naquela época achavam que esse tipo de pesquisa era totalmente descabida. É claro que máquinas não poderiam pensar como humanos, afinal, isso era uma máquina:

Na empreitada de ter sua pesquisa aceita e poder fazer seus experimentos sobre a consciência das máquinas, Turing deixa as questões técnicas da ciência da computação um pouco de lado e aborda nesse artigo questões existencialistas, expondo os preconceitos do leitor e fazendo-o questionar sua própria humanidade.
O jogo da Imitação
A Humanidade flerta com a ideia de que outro ser, desprovido de alma, possa realizar tarefas difíceis para ela. Antes, eram as pessoas de pele preta submetidas a trabalhos repetitivos e cansativos, com o pretexto de que não teriam alma ou sentimentos.
Agora moldamos as máquinas para fazer o trabalho pesado, inclusive o cognitivo, porque essas sim, não tem alma… será? Para desvendar esse mistério, o Sr. Turing propôs o desenvolvimento de um jogo da adivinhação.
Esse jogo conta com um interrogador que, através de perguntas e respostas, visa distinguir as diferenças entre os dois outros participantes para descobrir qual dos dois é o homem e a outra a mulher (Será que ele está aproveitando o artigo para fazer uma piadinha provocativa sobre o tema de gênero?) mas que ele gostaria de desenvolver esse mesmo jogo para desvendar qual dos dois é uma pessoa e o outro uma máquina.
Para Turing, é tão difícil compreender de onde vem o conhecimento de um humano quanto de uma máquina, pois fisicamente, ambos passam suas informações via impulsos elétricos (nós, pelo sistema nervoso).
Também o processo de aprendizado é um mistério, não há como atestar se as pessoas criam do zero suas habilidades ou imitam e vão aprimorando, assim como as máquinas fazem, por meio de seus algoritmos. Há pessoas com diferentes inteligências (chamamos de capacidade cognitiva), assim como há máquinas com capacidades computacionais diversas.
Por esses motivos e outros, Turing acredita que a questão “máquinas podem pensar?” é muito relevante e usa o artigo para refutar os argumentos mais comuns, aqui vão alguns (experimente ler pensando na sua própria inteligência e humanidade):
1. O argumento sobre a informalidade do comportamento
O ser humano pode agir de maneiras diferentes em uma mesma situação, então parece impossível escrever regras de conduta para a máquina seguir que imitem a imprevisibilidade de um ser humano .
— Turing refuta dizendo que um dia configurou um programa usando apenas 1.000 unidades de armazenamento e a máquina surpreendeu ele respondendo, em apenas 2 segundos, um número de dezesseis dígitos.
Para ele, isso significa que a capacidade de aprendizado da máquina é muito mais rápida do que a nossa, e ele ainda desafia: Você pode prever o que a máquina vai responder? Logo, para nossa capacidade de entendimento, o tempo de resposta da máquina seria como um evento informal e aleatório da vida. É tão rápido que pra gente parece aleatóri a a resposta da máquina — ainda mais um chatGPT.
2. Uma objeção teológica
Pensar é uma função da alma imortal do homem, máquinas e animais não têm a mesma capacidade.
— Turing debocha e diz que tem até preguiça de refutar o argumento da igreja, mas fdiz que é apenas uma questão de tempo até que a sua interrogação fosse aceita e se torne comum, assim como foram as descobertas de Galileu.
3. Argumento das várias deficiências
Máquinas podem fazer muitas coisas, mas não podem fazer X — como ser gentil, criativa, bonita, amigável, ter iniciativa, senso de humor, saber o certo e o errado, cometer erros, apaixonar-se, gostar de morangos e creme, fazer alguém se apaixonar por ela ou aprender com a experiência .
— Embora saibamos que máquinas não podem fazer X hoje, não devemos nos limitar ao que conhecemos. O desconhecido é sempre supostamente limitado em algum aspecto. Por que não explorar o que ainda não sabemos? Por que não nos aventurar em novas possibilidades? Se não fossemos além do que conhecemos, não iríamos ao espaço.
Às vezes, usamos este tipo de afronta contra pessoas também, geralmente de forma racializada. Achamos que uma pessoa pobre, preta, árabe, mulher, etc., não é capaz disso ou daquilo.
Também usamos este argumento para coisas mais abstratas, como subjulgar outras culturas: uma criança inglesa, em sua soberba, pode achar que aprender francês é uma besteira, pois esta habilidade é muito pouco útil na sua realidade. No entanto, à medida que cresce e tem experiências, pode descobrir que o idioma francês também pode fazer X ou Y.
Portanto, este tipo de indução não é científica e sobretudo não é adequada para invenções humanas. Sempre temos que explorar mais o espaço-tempo — E quantas vezes não estivemos errados ao longo da história?
4. Objeção Lady Lovelace’s
A máquina analítica não tem pretensão de originar nada; ela apenas segue ordens. Outra variante desse argumento é que uma máquina nunca pode fazer algo novo; ela só pode reproduzir.
— Isso é o mesmo que assumir que, assim que os fatos são apresentados, todas as consequências desse fato surgem na mente junto com ele. No entanto, isso não acontece. Nós precisamos de tempo e contato com qualquer coisa ou pessoa para compreender suas possibilidades.
5. O argumento da consciência
Um professor levantou o argumento de que máquinas não podem sentir.
— Turing acusa de ser um ponto de vista solipsista, ou seja, a ideia de que só nós podemos ter certeza de que “nós” sentimos e pensamos, não há como ter certeza que mais nada ou ninguém sente e pensa também.
Ele considera essa teoria imoral e acredita que um pensamento mais gentil é pensar que todos sentem e que não há como provar se as pessoas criam ou imitam. É claro que há um mistério em torno da consciência de cada ser, mas há um paradoxo ao tentar resolver essa questão, logo essa questão não precisa ser respondida de forma definitiva antes da que ele propôs: “as máquinas pensam?”
6. A objeção matemática
Existem perguntas que algumas máquinas não conseguem responder (existem declarações sobre o sistema lógico que não podem ser provadas nem desaprovadas dentro do sistema). Portanto, seria inconsistente criar um jogo, pois cairia nesse problema.
— Turing levanta alguns teoremas que poderiam ser usados como base para o programa que jogará o jogo da imitação, por exemplo, se o teorema de Gödel fosse usado, precisaríamos ter meios de descrever sistemas lógicos em termos de máquinas e máquinas em termos de sistemas lógicos.
Ele entende que geralmente quando há inconsistências e a máquina responde algo “errado”, nós nos sentimos superiores a elas, sem lembrar que nós também erramos com frequência. Assim, todos têm alguma inconsistência, mas isso não invalida o fato de que esse jogo poderia melhorar a compreensão sobre a questão e que poderíamos criar muitos jogos, afinal, não há como vencer todas as máquinas (passadas, presentes e futuras).
7. Argumento da continuidade no sistema nervoso
O sistema nervoso não é uma máquina de estado discreto, pois as causas e consequências não acontecem na mesma proporção. Portanto, não é possível imitar o seu comportamento com uma máquina de estado discreto.
— No entanto, dentro das regras do jogo, o interrogador não vai obter nenhuma vantagem dessa diferença. Por exemplo, se usarmos uma máquina de análise diferencial, o computador digital não conseguirá acertar exatamente as respostas, mas ele conseguirá fornecer respostas aproximadas corretas. Assim, seria muito difícil para o interrogador distinguir qual sistema é o nervoso e qual é o da máquina.
8. A objeção “das cabeças na areia”
As consequências de máquinas pensarem seriam tão perigosas que é melhor nem pensar sobre isso.
— Ele acha que esse argumento não tem muita substância (sim, em muitos momentos o artigo tem um tom jocoso, é ótimo).
O texto de Turing continua com mais refutações e considerações sobre como montar uma máquina para jogar o jogo da advinhação.
O jogo poderia levar décadas para ser construído. Se compararmos com outras questões, considerando que demoramos centenas de anos para abolir legalmente a escravidão e que o racismo ainda é uma pauta ativa, o prazo não parece fora da escala humana de descobrimentos históricos.
Já se passaram mais de 50 anos desde o artigo do Sr. Turing, as máquinas evoluíram muito e a questão de se elas pensam é cada vez mais atual.
Naquela eepoca, ele acreditava que haveria um computador capaz de jogar o jogo da imitação com tamanha performance que, em apenas 5 minutos de interação, o interrogador teria menos de 70% de chance de identificar quem é a máquina e quem é o humano.
Isso tornaria a questão “as máquinas podem pensar?” insignificante.
A morte de Turing
Na Inglaterra há menos de cem anos, a homossexualidade era proibida. Por isso, Alan e milhares de outros homens foram submetidos a tratamentos hormonais experimentais (foram cobaias) e perturbadores para se curarem dessa “doença”.
Infelizmente, a legalização da homosexualidade veio apenas em 1967, tarde demais para Turing, que se suicidou em 1954, muito provavelmente se envenenando.
Em agosto de 2009, o programador britânico John Graham-Cumming iniciou uma petição instando o governo britânico a se desculpar pela acusação de Turing como homossexual, petição reconhecida pelo primeiro-ministro Gordon Brown que se desculpou e descreveu o tratamento dado a Turing como “terrível”.
É bem triste pensar que Turing foi perseguido por ser homosexual e, por isso, sua contribuição pra ciência foi tão reduzida: ele escreveu este artigo quando tinha apenas 41 anos — 4 anos antes de sua morte.
*link para o artigo original do sr Turing: https://academic.oup.com/mind/article/LIX/236/433/986238